domingo, 25 de outubro de 2009

Sobre o dia-a-dia.

Há exatamente um mês não escrevo. Estes espaços de tempo em que não reproduzo sequer uma linha de pensamento, deixam lacunas na alma.
Ainda assim, as cenas do dia-a-dia continuam desfilando vívidas ante meus olhos e delas me sacio com muito gosto. Desta última semana, por exemplo, ficaram flashes que pretendo compartilhar com um ou outro que passe por aqui.
Uma delas, revivo agora, enquanto me vejo caminhando entre o refeitório e a cantina do hospital. Para que ninguém se assuste com o cenário citado, trabalho em um hospital. Havia almoçado no refeitório e deixei para tomar café na cantina, em companhia dos meus pensamentos. No caminho, dei de encontro com o olhar de algumas crianças. Recebi seus sorrisos... A infância é o período mais generoso da vida, que faz a todos belos. Sua principal marca é o sorriso cravado num rosto inocente; e mesmo num ambiente de dor e tristeza, que é o caso de um hospital infantil, a doçura da infância supera a amargura imposta pela doença. Pois bem, vejo naquelas crianças a infância em todo o seu esplendor.
Não há como passar despercebido ao coração. Tenho em mim o desejo de abraçar a cada uma destas crianças e conceder-lhes cura. Certamente tem aqui um dedo da maternidade. Pena estar tão longe de mim esta capacidade, porquanto posso pedir por elas a Deus, o que faço mentalmente, cada vez que caminho por aquele corredor sinuoso.
Esta é uma grande motivação para continuar. Por elas, continuo.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Recapitulando.

Desde que você nasceu, foi quando voltei a ler. E a escrever.
Voltei a cantar. E rindo, desafinar. Reaprendi a cozinhar. Mas ainda não reaprendi a me organizar.
Por você aprendi a cuidar de bebê. Amamentar, dar banho, limpar umbigo.Passei a acordar de madrugada. Dormir sentada. Acordar de sobressalto. E por falar nisso, dificilmente agora uso salto.
Depois que você nasceu tudo o mais me aconteceu.
Fiz novas amizades. Mudei minha linguagem. Meus hábitos, minha disponibiliade para caminhar. Voltei a guiar. Primeiro o seu carro, agora o nosso.
Aprendi a realmente me preocupar. E de tanto me ocupar, foi que finalmente entendi o que é descansar.
Aprendi a orar diferente. Clamar e chorar. Interceder e crer. E crendo, viver.
Redescobri o encanto das coisas simples. Do mato, da flor, da árvore, das pedrinhas, da areia. Lembrei do cheiro, da textura, das cores e do sabor. Tudo que era velho rejuvenesceu com você.
Depois que você nasceu eu me recriei. Me reinventei e mesmo assim, tem muito mais em mim para se transformar.
Desde que me tornei mãe, ando um tanto quanto emotiva.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Um doce ou uma travessura!



Feriado em casa não é sinônimo de tranquilidade.
Ainda mais se a casa mergulha num repentino silêncio. Cuidado, porque são altas as chances de uma arte em execução. São tantas as travessuras de um filho que sossego é artigo de luxo. Agora mesmo flagrei esta doce pessoa, de apenas dois anos, arrancando lascas de tinta da parede do quarto, onde já havia um pequeno infiltrado.
A cena cômica: o garoto sentado num canto, olhos arregalados, boquinha em forma de "não fui eu". Está certo que primeiro o sangue da gente fervilha e o tempo fecha... Mas num segundo momento, depois que passa o furor, é que se percebe a cara lavada do infrator em flagrante delito, com a roupa impregnada da poeira esbranquiçada e a parede ferida ... Eis a prova do crime! Lembrando disso, como não cair na risada?
Menino é assim mesmo. Eu já imaginava. Embora nunca tenha tido irmãos que me preparassem para ser mãe de um menino.
Que irresistível curiosidade desta mãe em supor o que ele pensava frente à parede enrugada, pedindo para ser descascada. Imaginem a espontaneidade daquele ato travesso. Afinal, a oportunidade lhe era imperdível. O momento perfeito... Calhou de uma brisa soprar naquele instante, encostando a porta do quarto. Agora ninguém o via. Ele não resistiu.
Se não foi assim que aconteceu, com certeza, foi muito mais interessante. O fato é que ser mãe deste pequeno é uma delícia.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Na cidade...


O que escrever sobre uma quinta-feira úmida?


Os chuviscos trouxeram na carona um frio rabugento que gela a ponta dos dedos da gente, e a ponta do nariz dos mais sensíveis. A cidade está desbotada, a paisagem urbana exibe uma monotonia pálida. Assim mesmo, faça chuva ou sol, os carros sobem a avenida rangendo os pneus pelo asfalto irregular.


Os ruídos transmitem mesmice e se espalham pelo ambiente das ruas em redor, sobressaindo-se perfeitamente ao barulho dos trabalhadores que emprestam vida à selva de pedra. A cacofonia moderna vai perdendo intensidade, mas nunca o ritmo, conforme sobe em direção aos últimos andares dos edifícios de concreto, erigidos em algum tempo, sob a superfície que sustenta este mundo.


As paredes encardidas dos prédios encobrem a existência de homens, mulheres e crianças, vivendo suas vidas, tal como pequenas unidades funcionais que fazem respirar as entranhas compartimentadas destas construções.


A cidade tem sempre a mesma feição, o mesmo jeito indiferente, embora o tempo desgaste tanto o concreto, quanto em maior escala, o povo que faz nele seu ninho e em seu torno o ganha pão. Portanto, não há nada de novo embaixo do céu que se faça notar, além da data de 20 de agosto de 2009.

Essa sim, uma novidade que vale a pena comemorar e viver!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Quem sou eu?



Dizem que errar é humano, mas há quem diga que errar é “humanas”. Minha mãe costuma contar que quando adolescente sonhava em cursar letras. Acabou se formando em serviço social. Na adolescência, eu amava aulas de história e redigia por paixão. Pois bem: ocorre que me formei em biologia. Parece que, neste caso em particular, errar é biológico.
Devo fazer a ressalva de que no mesmo período em que me empolgava com aulas de História do Brasil e me dedicava com afinco à leitura e escrita, também colecionava recortes de jornal das matérias que estampavam o caderno de Ciências. Meu interesse abraçava as últimas descobertas no estudo do câncer, assunto que me instigava e seduzia. Lia com avidez cada informação, guardava todos aqueles pedaços de jornal numa pasta azul de elástico, pobrezinha, tão surrada que era.
Relendo o que escrevi, confesso ficar perplexa comigo mesma. Como é possível alguém se interessar por história, letras e biologia ao mesmo tempo? Salvo os mais antigos que se formaram em História Natural, que obviamente, nada tem a ver com a Revolução Francesa. Enquanto isso, meus colegas de profissão apresentam aptidão natural por matemática. Super compreensível. Assim como a biologia, é uma ciência que tende a ser exata.
Nunca me relacionei bem com números, em meu universo só gravitam letras. Não se explica como alguém de espírito tão subjetivo ousou estudar biologia... A questão é se existe espaço para este perfil na carreira de pesquisa médica. Existe?Ainda me pergunto como vim parar aqui. O que faço usando jaleco branco, enquanto manipulo um frasco com cultura de células. Esta sou eu? Por outro lado, amar literatura não faz de mim uma linguista em potencial. Não conheço um milésimo da arte da escrita, assim como não domino a técnica científica.
Levei cinco anos para concluir o doutorado, uma verdadeira epopéia que me custou suor e muito sangue (bem, nem tanto o meu...). Ao concluir o trabalho experimental, considerei ser este o momento perfeito para me redimir do sofrimento, dedicando-me ao que me dava prazer: escrever. Construí cuidadosamente a introdução da tese de doutorado, à semelhança de quem alinhava o primeiro texto.
“Gongórico” foi o estranho elogio que recebi do meu ex-orientador, enquanto vomitava seu discurso inflamado sobre como deve ser um texto aos moldes científicos. Deu-me a entender que transformei o melanoma em poesia. Discordo integralmente, embora, volta e meia este comentário me venha à mente colocando à prova minha vocação.
Aos trinta e um anos de vida, ainda não possuo argumentos sólidos que me convençam de que um ou outro seja meu nicho. Não me considero boa o suficiente em nenhuma das duas coisas. Ainda assim, continuo trabalhando com pesquisa científica médica, oportunidade que sonhava receber da vida, quando colecionava as notícias apocalípticas do Caderno de Ciências.
Hoje compreendo mais nitidamente a importância deste trabalho, mas sem o mesmo romantismo que me empurrou a fazer esta escolha. Talvez por causa da realidade científica brasileira, que prepara e depois desampara.
Estou ciente de que permaneço neste cenário, mais por persistência (leia-se teimosia) do que por aptidão cega e desmedida. Minha eterna motivação é que devo dar o meu melhor, ainda que contribua com uma mísera gota de conhecimento. Há sim, boa parte de mim que se familiariza com a figura do cientista maluco. Utopia? Pode ser que sim, mas são as ditas utopias que alimentam a alma da gente de esperança.
Decididamente, tenho várias personalidades...Tem dias que acordo tão bióloga. Já tem dias que acordo tão somente travestida de aspirante à escritora, nada a ver com a outra faceta. Peço um tempo para o laboratório de pesquisa. Foi o que me aconteceu hoje. Como conseqüência, eis aqui um desabafo pontual. Liberto do pensamento científico.
No mais, sou mãe sempre, independente da escolha profissional, e por hora, tem um garoto muito especial ziguezagueando pela casa, rondando a mãe sentada diante de um computador. Sou toda sua, filho!
O ser ou não ser pode muito bem ficar para depois...

sábado, 25 de julho de 2009

Volta.


Voltei a brincar de poetar.
Sim, voltei a ver a vida
Por outro prisma;
Voltei a confabular com rimas...

Voltei a escutar
As palavras a dialogar
Consoante aos meus plurais
De artigo singular.

Voltei aos devaneios
Que mesmo nos dias cheios
Não se cansam de me procurar;
Voltei para, mais uma vez, sonhar.

(Priscila M)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

21 de maio: um ano e onze meses de vida do Gustavo.

Nesta manhã, o sol emprestou àquela praça uma porção generosa de sua régia luz. A praça, mais festiva que de costume, recebeu a todos os seus convivas habituais, entre humanos, pombos e cachorros, para uma celebração em pleno outono tropical. Encostado junto a uma árvore, coberta por ramos intumescidos de folhagem cor oliva, estava um vendedor de sorvetes com semblante abatido, cujo vulto estático e mudo contrastava com o cenário dinâmico e pitoresco do largo. Trazia os olhos semicerrados e fronte ligeiramente voltada para trás, traduzindo uma pacata melancolia como a de alguém que não adentrou ao recinto da festa por chegar sem o convite, esquivando-se desta feita, de compartilhar a intimidade dos personagens da praça.
Um pouco mais adiante, o sol vibrava amarelo no chafariz circundado pelos pombos, que jubilavam, ao seu modo, a manhã de maio. Em gestos velozes e instintivos, banhavam-se de água e luz, à vista dos olhos matreiros daquele menino que ama a praça, em igual tom ao peixe que ama as águas doces do rio. Como se divertia à custa daquele bando de pássaros! Sorria com seus grandes olhos azuis-esverdeados, iluminados pela alma em êxtase. Percebeu ao seu lado, que alguns pombos se aventuravam a ciscar os veios do chão. Correu-lhes ao encontro. Vibrava consigo mesmo, ao menor movimento das asas, dos bicos e das penas que sacolejavam livres na brisa morosa. Estalava beijos voláteis dirigidos ao bando saltitante de pombos, aos senhores sentados no banco do jardim, e não menos, aos transeuntes que se surpreendiam com a espontânea receptividade nos lábios daquela criança.
Alguns beijos furtivos eram carregados por uma fresta de vento, indo ao encontro dos beijos impetuosos de um casal que namorava num banco da praça; alheios à existência das demais vidas e dos olhares curiosos que cintilavam em derredor. Apenas os passos cadenciados e delicadamente escandalosos do menino, conseguiram abstrair os namorados daquela paixão arrebatadora. Capturados pela realidade por breve instante, renderam-se ao riso tímido e balbuciaram algumas palavras, motivados por aquele pequeno que apostava corrida com o vento, enquanto media forças com a boca da calça de veludo azul, bem maior do que seus dois anos incompletos.
Alguns minutos depois, o casal já voltara à dura tarefa de amar e o menino completara uma volta em torno do tronco caloso de árvore, que segundos antes, servira de amparo ao nosso sorveteiro. Dois senhores de avançada idade, outrora sentados ao lado de um jardim florido, onde se expunham à luz do sol, rumaram em direção ao pequeno que retumbava aqui e acolá, de acordo com o rumo dos pombos. Encontraram-se de súbito, ou não se sabe se, por ato premeditado do destino, lado a lado, aproximando os pólos extremos da existência; no enlace contíguo entre o novo e o velho. Uma cena, no mínimo, tocante para quem acompanhava o desenrolar daquela história como mera coadjuvante. Por fim, o sorriso gentil daqueles senhores recebeu como recompensa os beijos crispados do menino, risonho.
A manhã também reservou encontros tumultuados entre os freqüentadores caninos da praça, que passeavam na companhia de senhoras tagarelas. As mulheres, animadíssimas, tocavam a conversa com um olho cá e outro lá, sem perder de vista seus cachorros afoitos, que decididos, atazanavam os pobres dos pombos. O menino presenciou o revoar dos pássaros, incomodados pelas constantes interrupções, por conta das quais mal conseguiam engolir o restolho de comida que alguém depositara num cantinho da praça. Para o menino, cada revoada resultava em braços e pernas agitados descoordenadamente e olhares de vivas. Em algum momento, notei seus olhos marejados, encapados por um brilho intenso.
Surpreende-me esta praça; palco de encontros, desencontros, descobertas e, vez ou outra, de mesmices bucólicas. Naquele quadrilátero arborizado, onde crianças procuram aventuras e adultos fogem das desventuras urbanas, tudo ou nada podem ocorrer em uníssono, repentinos. Hoje, ocorreu-me um pensamento novo a respeito desta praça; ela pertence ao menino, que aprendeu a amá-la despretensiosamente. Por este motivo, foi naquela ilha-verde que comemoramos seus quase dois anos de vida. Bem ao gosto do menino, rodeado de pombos e gentes peculiares.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Mais uma vez, a praça.

Hoje, voltamos àquela praça de sempre, que me pareceu excepcionalmente apática. Ou talvez, eu que estivesse. O fato é que os pombos não estavam mais lá; e ainda nem era cinco da tarde. Será que os pombos não moram ali? Quem sabe sejam apenas funcionários, assim como deve ser o chafariz, que trabalha melhor nos feriados e finais de semana. Porque faltaram os pombos, o menino quase ficou sem divertimento. Logo que avistou sua praça, ele se assanhou e por pouco não saltou do meu colo. Ganhou liberdade junto ao chão e saiu à procura dos amigos alados. Vasculhou o coreto e os canteiros de flores, na esperança de encontrar unzinho que fosse, mas a empreitada não obteve sucesso. Da próxima vez, prometo que o levo mais cedo, ainda quando os pombos estiverem curtindo o ócio da praça.
Por fim, o que salvou o passeio foram alguns cachorros que tomaram o lugar das aves, correndo livres, leves e soltos de um canto para o outro, demarcando território. Cheguei até a desconfiar que os cães tivessem lanchado os pombos; mas não acredito que sejam suficientemente sagazes para caçar e arregaçar as pobres aves. Cachorros da cidade são mal acostumados, assim como a gente. Já ouvi falar de cachorros que fazem festa de aniversário, freqüentam spas, mas isso é assunto para outro dia.
Hoje a praça me inspirou muito pouco. Já não digo o mesmo pelo menino, para quem, tudo tem cheiro de descoberta. Foi muito sincero ao se mostrar insatisfeito por vir embora. Haja vista, toda vez que a gente passa ao lado daquela praça, ele se volta para ela e abre os braços, como se quisesse abraçá-la mais uma vez.
Parece que o encanto daquele lugar é a mais pura e simples liberdade que o menino usufrui enquanto corre e ri à vontade. Ele não precisa mais do que isso para estar feliz, ser criança. Vai ver, esse é o segredo.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Uma crônica.


Passava das nove horas da manhã quando subi pelo corredor de lojas populares do centrão. Na trilha sonora, o locutor de voz acetinada anunciava a oferta imperdível do dia. Calça feminina de liganete. Não desbota. Não deforma. Apenas R$ 14,99. Entoava o barítono do calçadão.
No balburdio colorido dos anunciantes, virei-me para o lado e me surpreendi com uma figura intrigante, em nada condizente com o público que circulava por aquelas bandas. Vi São Francisco de Assis, caracterizado por sua veste marrom surrada. Trazia os pés descalços e uma cruz entalhada em madeira, pendurada ao cordão que abraçava a cintura esguia. O cabelo à moda medieval e a barba serrada eram as mesmas pintadas nas gravuras. A placidez, também. O que ele estaria fazendo ali?
Aquilo me pareceu miragem, ou até como deve estar parecendo agora, uma loucura. Bem da verdade, o tênis apertava as pontas dos meus dedos e o sol interceptava minha visão. Mas estes incômodos não me fariam alucinar a tal ponto. Estava, sim, ao lado de um jovem franciscano da Toca de Assis.
Ele olhava para os lados, insistente. Talvez procurando por algum dos seus necessitados.
Imagino São Francisco como um homem desprovido de ganâncias materiais, pois nascido em berço de ouro, abdicou a tudo. Não usufruiu da riqueza a que tinha direito; preferiu viver a simplicidade beirando à pobreza absoluta.
Afinal, quem são os pobres de São Francisco? Serão também os pobres de espírito acolhidos por Jesus?
Pois as ruas estão repletas de empobrecidos. Mas também há pobres frequentando shoppings luxuosos. Se existem milhares de pobres andarilhos, exitem ainda outros que andam em carros importados. Miseráveis ora moram debaixo de pontes, ora compram apartamento em Miami.
Continuei caminhando, desta vez voltando para casa. No trajeto, os rostos se multiplicavam e os passos se confundiam. A dor nos dedos já denunciava os calos futuros. Ainda pensava naquele São Francisco regresso. O que ele estaria fazendo ali?
Porquanto Jesus, abdicando de riqueza infinitamente maior, veio para os pobres de corpo e espírito. Mas muitos deles continuaram paupérrimos. O que mantém o pobre acorrentado à sua condição de pobreza? Decerto tem a ver com a voz de manteiga que insiste no anúncio das ofertas imperdíveis do dia. Compre, compre, compre! À vista com desconto, ou, a prazo sem juros e parcelas a perder de vista. Empobreça-se! É o que deveria dizer.
Quanto pior, é a voz que sai do interior da alma: venda-se! Entregue seu bem mais precioso, sua vida, para alcançar ambições desenfreadas. Assim se perpetua a miséria, a fome, a corrupção, o descaso dos poderosos, a desigualdade, a injustiça humana...
São estes os matizes do nosso século. Neste mercado tudo se vende e se compra, menos alegria verdadeira. Há de ser por isso que as cidades estão tão tristes.
Afinal, o que São Francisco estaria fazendo ali?
Cheguei à avenida principal da cidade. Guardadas as devidas proporções, pode-se afirmar que corresponde à aorta de Campinas. Pergunto-me o que há nela de maior, se não o número de pessoas circulantes. Este povo é como sangue que oxigena as artérias urbanas. O sangue que, paradoxalmente, padece de vida.
Atrelada a esta imagem, seguiu-se uma cena que me deixou consternada. À margem da passagem dos pedestres, um garoto dormia encolhido no degrau sujo, desconfortável e gelado de uma fachada comercial. O pobrezinho aparentava ter no máximo doze anos. Mesmo com rosto encardido, as feições bonitas de criança se sobressaíam.
Onde estaria aquele São Francisco?
Não estava ali para acalentá-lo. Não envovelveria aquele pequeno corpo maltrapilho entre os braços...
Por outro lado, eu estava lá, e por seguir o fluxo, quase passei reto de onde o garoto dormia. Parei. Remexi dentro da sacola que apertava um dos meus braços. Tirei de dentro, leite achocolatado e mini-bolo, que levava para meu filho. Havia diante de mim outro filho faminto.
Questionei-me em qual sarjeta estaria sua mãe. São Francisco estaria a procurá-la?
Voltei-me alguns passos, procurando a melhor maneira de deixar os alimentos sem que o acordasse, e ao mesmo tempo, que fossem facilmente encontrados pelo garoto.
Saí de lá envergonhada. Em parte pela pobreza do lanche que tinha para lhe oferecer naquele momento, e em parte pela pobreza espiritual que envenena a humanidade. Decerto, o mundo não carece de mais artefatos, pensei para mim. Aliás, está cheio até as bicas de tanta parafernália.
Absorta em meus pensamentos, logo estava em casa. Ainda contagiada pelos acontecimentos da manhã, esqueci-me da hora de comer. Também me esqueci de guardar as compras. Contudo, não me esqueci de que lá fora ainda existe esse menino dormindo ao pé do comércio, se não me engano, de uma padaria.
Tudo indica que, na bolsa comercial, uma alma está valendo menos do que uma penca de bananas.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Aquele abraço...


Ah, sinto falta dos amigos com os quais compartilhei do mesmo tempo e espaço, em algum período da vida... Hoje, o rio deságua em diferente braço de mar.
Pois saiba, destino, que sua conspiração para arrancá-los de minha história, falhou amargamente. Antes que colocasse seu plano em ação, capturei a imagem, a voz, o jeito de ser de cada um deles. Ao invés de trancafiar estas raridades no baú escuro e triste da saudade, libertei-as para que eternizem os bons momentos. Assim não se perdem junto com minhas memórias caducas.
Hoje, teríamos muito mais o que conversar e confidências para compartilhar, pois não rimos o bastante e nem choramos todas as lágrimas possíveis. Enfim, estes amigos serão para sempre. Caso nossas vidas novamente se intersectem (esta é minha teimosa esperança), retomaremos nossos pontos de afetos e desafetos, que são vários! Porque os bons amigos se atritam e se irritam também; e como fazem isso bem... Depois que baixa a poeira, estes episódios tensos costumam gerar boas risadas. E mais amizade.
Se eu pudesse fazer algo do tipo, reuniria meus amigos de todas as minhas épocas; personagens das histórias incansavelmente narradas para meus amigos atuais. Estes amigos também não quero perder. Por outro lado, o que há para se fazer, não é? Como confiná-los dentro das minhas fronteiras e proibi-los de continuar seu caminho independente do meu? Seria egoísmo demais. E o mundo está superlotado de excêntricos que tomam atitudes das mais esquisitas, muitas vezes, chegando a sufocar as amizades verdadeiras por conta de tolices. Não posso, não quero, não devo. Um dos charmes da amizade é saber dividir a conversa, o sorriso, a presença, a história, o amigo com outros amigos que não fazem parte do nosso pequeno grande universo.
Outro charme é saber como resgatar as lembranças. São bem mais prazerosas quando guardadas a fresco, sem o cheiro decadente de naftalina; quem sabe, catalogá-las em ordem cronológica ajude nesta agradável tarefa. Mas elas devem emergir aleatoriamente, de acordo com as diretrizes traçadas pelo coração. Como é bom reconstruir os momentos que ficaram registrados no arquivo vivo do cérebro! Não é possível que as lembranças fiquem contidas em apenas um hemisfério da massa cinzenta; é muito material para pouco espaço. Por certo também é esta uma das funções vitais do coração: acomodar os amigos guardados no peito.
A esta altura, admito que esteja sendo um tanto injusta; não são todos os amigos que a vida afana do nosso convívio. Alguns continuam ao alcance do nosso olhar; vivem uma história em comum com a nossa por longos anos. Ainda bem que existem os amigos inatos (que não escolhemos); presentes generosos da vida - que afinal não é tão velhaca assim-. A família faz parte deste núcleo de amizade inerente à gente. Nela estão os amigos que crescem conosco; que partilham dos nossos sucessos e fracassos. São os amigos que acompanham fielmente os capítulos da nossa trama pessoal, quase sempre fazendo parte dela. Pena que nem todos encontrem cumplicidade no ambiente familiar, porque este “querer bem” faz grande diferença nos relacionamentos que surgem a seguir.
Pode ser que a vida consiga afastar os melhores amigos, mas não pode apagar as marcas deixadas por uma amizade. É como se cada amigo deixasse suas digitais impressas em nós; não sei bem por que, mas esta alusão me fez lembrar toda aquela baboseira hollywoodiana de gravar as mãos das celebridades na calçada da fama. Pois bem, digamos que cada ser humano seja dono de uma calçada da fama particular, onde os amigos deixam gravadas suas palavras, seus valores, suas atitudes; ao invés do contorno grosseiro da palma da mão. Interessante que estamos habituados a procurar amigos cuja fôrma se encaixe direitinho no molde deixado pelo amigo antigo. Os seres humanos vivem a tona com suas manias bobas; quantos amigos nem chegaram a existir porque não encontramos neles o perfil da nossa patota? Não foram poucos.
Meus melhores amigos são bastante diferentes de mim. Não acredito na amizade entre pessoas muito semelhantes em temperamento, manias, gostos. Está certo que as convergências acabam superando as divergências; caso contrário a tal da afinidade iria para o espaço. Contudo, assim como no casamento, deve haver complementação. Aproveito a deixa para falar sobre o meu melhor amigo, que é diferente de mim em vários aspectos- em todos eles o julgo maravilhoso- principalmente naquilo que tem pouco de mim. Aliás, nosso primeiro encontro nasceu de uma amizade que a partir de então cresceu exponencialmente. Depois de outros tantos encontros, já não se tratava apenas de uma amizade- caímos em terras perigosas- sim, nos apaixonamos e nos amamos no decorrer destes dez anos.
Até mesmo o nome dos amigos soa diferente aos nossos ouvidos. Exibem uma expressão singular, inconfundível às milhares de pessoas que transitam pelas ruas da vida. Incrível como nossos amigos nos são familiares. Por esses amigos de ontem e hoje, dediquei a tarde para confabular um pouco sobre o cultivo das amizades, seja por meio das lembranças ou do dia-a-dia que nunca termina. Dedico esta declaração de amizade àqueles com quem mantenho um vínculo simbiótico, apesar dos pesares; porque os atributos tempo e espaço sempre contribuem para sabotar amizades.
Afinal, quando são genuínas, sobrevivem ilesas a estes percalços; ainda que após alguns anos se resumam a um álbum de recordações que a gente folheia com carinho, enquanto aprecia uma xícara de capuccino.
Amigos, considerem-se abraçados...

segunda-feira, 9 de março de 2009

Naquela praça.


Naquela praça, perto de casa... Crianças aprendem a andar. Cachorrinhos atletas levam seus donos de estimação pra passear. Ali sobrevive um coreto que evoca saudade de um tempo que outrora não vivi. Mais adiante, figura uma fonte que deságua de vez em quando, nas manhãs de sol. Aos pés deste chafariz se acumula uma água esverdeada, na qual nadam garrafas de plástico. Mas nada de vida.
Frequentadores do largo se acomodam naqueles banquinhos de praça feitos pra gente prosear. No entanto, quase sempre ficam calados; taciturnos. Acompanham de soslaio a passagem cadenciada da gentarada. Tenho cá comigo que aquilo tem efeito de divã.
Os únicos que causam algum alvoroço são os pombos. Subsistem às dezenas. Agruvinham-se na marquise do coreto e quando não há mais espaço, revezam-se na base da fonte. E aquela gente que se derrama no banco da praça fica quieta enquanto escuta a conversa daquela espécie de rato alado. Eita, pássaro mal falado!
É neste espaço que o menino exerce sua infância. Onde persegue os pombos que descem ao chão pra ciscar... Ele se esquece que é criança humana e corre livre pra junto do pombal. Ei, menino! Você não sabe que pombos têm carrapato? Transmitem doenças e tal. Mas o menino... Ah, o menino nem se apoquenta. Afinal de contas, que é que pode haver de mal?
Pisca grande de pura felicidade! Voa ao encontro dos pombos que se põem a farfalhar. Desconfiados se dispersam, quais leprosos que escondem suas chagas da luz do dia. Afastam-se para o esconderijo no topo do coreto. Que pena! Dos pombos só sobram as penas.
O menino não desiste, persiste. Ainda lutando pra domar os passos desajeitados. Ele corre atrás dos famigerados pombos ... Ah, pequeno, bom é ser como você que não se deixa levar pela opinião das pessoas! Quem o leva são seus pezinhos esperançosos.
Sabe o que é? As pessoas nem se lembram do quanto é bom correr atrás dos sonhos. Por isso que, sem você, aquela praça sorri sem graça.




quarta-feira, 4 de março de 2009

Sobre vida e mar.

Gosto de falar sobre a vida em todos os seus sentidos e abrangências. Confesso não saber discuti-la através de uma visão existencialista. Admiro profundamente quem o saiba. Também não sei nadar, por isso sempre evito alto-mar. Sou daquelas que se diverte pulando as ondas mais rasas. Acho difícil organizar todas as cores numa palheta, assim como me confundo ao escutar todas as falas da minha alma. Mais um motivo para continuar pulando ondas à beira da filosofia. Quem sabe um dia aprenda a nadar e encare uma reflexão realmente densa em mar bravio.
Acabei de ler um dos clássicos da literatura mundial, “Hamlet”. Por mais que enalteçam a vida, as belas obras de Shakespeare convergem para o final trágico. Mas neste caso, a morte coroa com magnitude a existência humana. Embriagado pela emoção momentânea , o público aplaude o final apoteótico que encerra a saga do príncipe Hamlet, do reino da Dianamarca. Ovacionados pela platéia, os atores se recompõem do seu estado morimbundo e voltam à vida.
Ufa. Tudo não passa de uma encenação. De uma obra genial, diga-se de passagem.
Shakespeare me recuperou à lembrança certo autor cujas obras se baseiam em uma total incoerência no tocante a ordem natural vida e morte. Este autor deixou um legado de muitas obras que podem ser consideradas como clássicos, não apenas da literatura mundial. As obras pertencem a um livro que sobreviveu aos leões dos circos romanos, às fogueiras da idade média, ao racionalismo iluminista, ao materialismo, hipocrisia e excentricidade humana.
Existe algo de espetacular em suas entrelinhas que não se encontra em nenhuma outra obra. É possível sentir a vida fluindo de suas páginas conforme se avança na leitura. O autor a quem me refiro é Jesus de Nazaré, cujo tomo das obras está disponível a qualquer homem e em qualquer época, na Bíblia, mais conhecida como Palavra de Deus.
As obras deste Mestre me surpreendem pela ternura e poder. Ninguém antes ou depois Dele conseguiu cativar número maior de seguidores, porque Jesus é o amigo das multidões. Das multidões de famintos que alimentou com pão, peixe e palavras de vida. O autor dos milagres, de alcunha Cristo, gerou histórias reais totalmente ilógicas para nosso parco entendimento: em uma delas a cena se iniciou com uma criança morta e culminou com a mesma criança, viva. Ele ainda pediu que trouxessem comida para a menina. Eis a incoerência da qual me referi. Bendita incoerência que traz coesão à vida. Eis aí, um final apoteótico digno de aplausos. Mas Ele não pediu louvores, em lugar deles, recebeu escárnio.
O Senhor dos mares que acalmou tempestades. O Senhor dos ventos que domou ventanias. O Filho de Deus que andou sobre o mar da Galiléia. Cruzou as águas da Palestina num barco de pescadores e atravessou as ruas de Jerusalém montado num jumentinho emprestado. No entanto, se fez o único acesso da morte para a vida.
Jesus foi muito longe para que chegássemos mais perto da eternidade. Ao morrer venceu o "para sempre" da morte. Ao ressuscitar trouxe a vida eterna com Ele. De modo que todos recebam a oportunidade para mudar o rumo do barco, içar velas, levantar âncoras...
Por maior que seja o sofrimento humano, nada se compara ao conforto que está por vir àqueles que compreendem o teor desta mensagem. E que mensagem.
É desta Vida de que estou falando. Jesus está para ela assim como a água está para o mar. Viver é preciso. Talvez, nadar seja preciso...

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Um caderno.


Quando criança, tive um caderninho cor - de - rosa pálido. Tão cedo o ganhei, transformei em meu diário. Na mesma época me percebi enamorada por escrever e arrisquei meus primeiros versos nas folhas cor-de-rosas decoradas por corações.
Não havia em mim outra pretensão se não traduzir meus impulsos e aspirações para a Língua Portuguesa. Os temas que me inspiravam eram rústicos, em nada sofisticados. E existe brincadeira melhor do que poetizar a vida segundo os matizes que delineiam este universo infantil? Não que me tenha sido ensinada...
Por um tempo este caderninho andou sumido, provavelmente no meio da minha bagunça. Depois reapareceu tímido em uma das gavetas, aliviado por ter sido reencontrado. Também fui eu que me reencontrei.
Nada como o tempo para temperar as lembranças! No olhar pouco mais maduro salta a inocência dos primeiros anos, e deste mesmo olhar, algumas lágrimas. Não sinto falta dos anos passados. Celebro os anos recuperados daquele conjunto de páginas. A caligrafia arredondada e ornada à mão- nada quadrado e perfeito, pelo contrário, repleta de sinuosidades exageradas e deliciosamente assimétricas- acusa a autoria dos dedinhos curtos de uma criança. Ah, vigorosos anos da infância que nos alcançam seja qual for a distância percorrida pela vida... É só querer e a criança acorda bocejando com seu hálito fresco dentro da gente.
Curiosa a relação que traçamos com o tempo. A gente consome o passado, idealiza o futuro e vive o presente como se fosse uma página entre esses dois capítulos. O passado nos convida à lembrança, enquanto o futuro nos promove esperança. Mas é no presente que se constrói tanto um quanto o outro.
Percebo isso, também agora, enquanto descrevo as emoções instantâneas provocadas por este grito da infância. É certo que daqui a dez ou vinte anos, o que me provocará lágrimas de saudade serão meus atuais trinta anos de descobertas.
Melhor viver todos os dias com a criatividade de quem conta uma história, a empolgação de quem lê um bom livro e o cuidado de quem prepara uma ceia.
E o tal do caderno resultou nisso aqui...

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Olhos de botão



Quando ele crescer e não mais couber sentado na caixa de brinquedos, talvez me pergunte como fora nos tempos de bebê. Quais imagens resgatarei pra ele? Bem...
Achava graça em seus olhos de botão, cada vez que você acordava e dizia bom-dia ao mundo. Aquele mundo apenas seu, no recanto do seu quarto. E não havia quem não se deixasse encantar pela vivacidade daquele par de botões azulados.
Seu cabelo, fininho igual garoa; ora caramelo, ora dourado como raios de sol. Tão ralinho nos primeiros meses que parecia ausente. Mas estava lá, marcando presença, conforme se passavam os dias.
O sorriso meigo, para meu bel-prazer, igual ao do pai. Nem mais, nem menos. As expressões faciais, os gestos corporais, enfim, quase tudo remetendo ao homem maravilhoso que quando criança deve ter sido uma introdução a você.
Os dentinhos chegaram cedo deixando-o ainda mais encantador. Por dias carreguei as marcas destes danadinhos carimbadas na pele.
Depois de conquistar os primeiros passos, vieram as descobertas mais incríveis. Que existem esconderijos interessantes na cozinha ou no banheiro, que nós adultos, chamamos simplesmente de armários. Era abrir as portas para encontrar um novo mundo de formas e cores. Foi aí que os dias tranquilos disseram adeus, principalmente para nós, a turma do "não pode, Gustavo!".
Mas isso não foi problema. Difícil mesmo era segurar a risada quando você “roubava” o saleiro e saía correndo para se esconder atrás da poltrona amarela. Tão pequeno, não podia ser visto, embora fosse traído pela respiração ofegante. E quando descoberto (era isso que você queria!) fazia festa, corria com aquele objeto precioso escapando das mãos.
Não há como pensar neste pequenino sem deixar escapar um suspiro antecipado de saudade.
É, filho, você está crescendo...!

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cicatrizes

Tenho algumas cicatrizes. A principal vai de cima a baixo do tórax, mas quase não se nota olhando de relance. É linda, sempre achei. Hoje a considero ainda mais linda porque não me deixa esquecer de que estou viva por milagre.
Quando pequena, gostava de passar o dedo e sentir a diferença na textura da pele. Está certo, não é lá muito lisinha, mas cada um dos pontos foi fechado por mãos habilidosas há trinta e (quase) um ano atrás. É o arremate de um minucioso trabalho feito por artesãos-médicos. Minha mãe comenta que naquela época não havia exames de imagem sofisticados quais os que dispomos hoje. Era tudo na raça, ou melhor, na “chapa”. Há trinta e poucos anos, a radiografia era a única tecnologia disponível para diagnóstico de cardiopatias. Não é milagre estar viva?
Volta e meia penso naqueles que fecharam o “buraco” do meu coração. Foi há alguns tantos anos... Certamente, corrigiram centenas de coraçõezinhos após ajustarem este que bate em mim. Desconheço o nome dos membros daquela equipe de cirurgiões, liderada pelo Dr. Adib Jatene. Quanto menos sou capaz de me lembrar da fisionomia deles. Entretanto, são alguns dos heróis humanos que marcaram minha infância, no lugar do Homem-Aranha ou Mulher-Maravilha. Sob influência destes ilustres desconhecidos, houve um tempo em minha vida que considerei a medicina como opção... Por isso, se não for muito tarde, meu muito obrigada a estes cirurgiões-doutores.
Além desta, tenho outra cicatriz, só que no punho esquerdo. Provavelmente, fruto de algum cateterismo que acompanha a cicatriz-mãe. Por coincidência fizeram-na em forma de cruz. Carrego uma pequena cruz comigo, que analogamente àquela Cruz, está vazia. Não tenho como escapar à comparação, desculpe-me. É mais forte do que eu. Simplesmente deixaram este “símbolo” em mim!
Meu filho também tem algumas cicatrizes (uma abaixo da escápula e outra no tórax, parecida com a minha). Passados trinta anos, as mãos habilidosas dos artesãos-médicos foram beneficiadas com o surgimento de novas técnicas e materiais cirúrgicos de última geração. Logo, a marca deixada no peito do meu pequeno, é mínima. Muito menor do que a minha, ancestral. Esta marca é mais um dos vínculos que nos une. Mas, diferente da minha cicatriz, a dele doeu. Em mim, pois não desejava vê-la em outro peito se não no meu.
Embora nos recorde os dias de sofrimento, uma cicatriz pode (e deve) ser vista com alegria. Depende dos olhos da gente. O simples fato de mostrá-la ao mundo é uma bela vitória. Por si só, não nos diferencia das pessoas, apesar de ser um diferencial. Só que traz um novo significado para o que pensamos ser a vida. Sobre minha primeira infância, dizem que eu abordava as pessoas mostrando-lhes minha cicatriz. À minha maneira entendia o significado especial que esta marca em meu peito representava para aqueles que me queriam bem.
Gosto de contar a história desta cicatriz, porque afinal, ela se tornou a minha história. Existem cicatrizes na história do meu pequenino, tanto quanto na de centenas de portadores de cardiopatias congênitas, espalhados por este Brasil. Dia desses serão eles que contarão histórias pra gente.
Quero que meu filho encare suas cicatrizes com naturalidade, como se tivessem vindo junto com ele. Comigo ainda é assim. Conforme a gente vai crescendo, aprende a não se esconder atrás delas, seja por vergonha ou autopiedade. O que não é diferente das cicatrizes da alma.
Importante é que, por trás destas marcas físicas, exista um coração grato.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Hoje, já é 2009.

Jamais poderei dizer que não conheci o sorriso de Deus. Eu o vi hoje de manhã, quando você sorriu pra mim, filho. Seu rostinho corado me fez lembrar de que nem sempre foi assim. Há um ano, a alegria existia, mas estávamos machucados. Incompletos. Sabíamos que Deus olhava para nós, contudo, queríamos mais. Queríamos que os dias voassem e com eles, a sua doença. Foi difícil passar o dia 31 de dezembro de 2007. Quanto mais, curtir aquele primeiro dia de 2008. Naquelas circunstâncias, uma intoxicação medicamentosa abalou sua saúde, já bastante frágil, mas não apagou seu sorriso. Embora as lembranças ainda sejam fortes, estes dias se passaram. Um ano depois, você está aqui, brincando. De repente, viro-me para trás e o surpreendo embaixo da mesa, crente de que vai conseguir pegar a chupeta azul sobre o tampo de vidro. Sapeca, como só você sabe ser. Onde ficou aquele bebê vulnerável, de grandes olhos azuis? Cadê o fantasma do medo? Aquele bebezinho ainda existe nas fotos que documentam a vitória conquistada em tão pouco tempo de vida. O fantasma do medo foi sepultado num lugar onde só Deus conhece o endereço. Sabe, filho, ninguém está isento de passar por crises e adversidades. Você sabe disso melhor do que muita gente grande. Contudo, sua história prova que Deus não nos abandona em nossos desertos. Basta querer que Ele fique em nossa vida. Tem dias, que passando pelo deserto, a gente quer ficar sozinho pra chorar. Nestes dias, Ele providencia uma sombra. Em todos aqueles meses, Ele nos preparou várias sombras. E, depois que este deserto ficou para trás, tem revelado pouco a pouco (ao pé do ouvido), os detalhes do Seu cuidado. Essas descobertas são surpreendentes. Levam-nos a entender como sobrevivemos aos ataques da ansiedade. Foi por causa da fidelidade de Deus, expressa também no seu olhar feliz de criança. Ademais, não tenho muito que acrescentar a este texto, se não: “Obrigada, Pai. Por tudo. Em especial porque, mesmo quando cedi à tentação de duvidar, Você sorriu para mim.”