terça-feira, 28 de abril de 2009

Uma crônica.


Passava das nove horas da manhã quando subi pelo corredor de lojas populares do centrão. Na trilha sonora, o locutor de voz acetinada anunciava a oferta imperdível do dia. Calça feminina de liganete. Não desbota. Não deforma. Apenas R$ 14,99. Entoava o barítono do calçadão.
No balburdio colorido dos anunciantes, virei-me para o lado e me surpreendi com uma figura intrigante, em nada condizente com o público que circulava por aquelas bandas. Vi São Francisco de Assis, caracterizado por sua veste marrom surrada. Trazia os pés descalços e uma cruz entalhada em madeira, pendurada ao cordão que abraçava a cintura esguia. O cabelo à moda medieval e a barba serrada eram as mesmas pintadas nas gravuras. A placidez, também. O que ele estaria fazendo ali?
Aquilo me pareceu miragem, ou até como deve estar parecendo agora, uma loucura. Bem da verdade, o tênis apertava as pontas dos meus dedos e o sol interceptava minha visão. Mas estes incômodos não me fariam alucinar a tal ponto. Estava, sim, ao lado de um jovem franciscano da Toca de Assis.
Ele olhava para os lados, insistente. Talvez procurando por algum dos seus necessitados.
Imagino São Francisco como um homem desprovido de ganâncias materiais, pois nascido em berço de ouro, abdicou a tudo. Não usufruiu da riqueza a que tinha direito; preferiu viver a simplicidade beirando à pobreza absoluta.
Afinal, quem são os pobres de São Francisco? Serão também os pobres de espírito acolhidos por Jesus?
Pois as ruas estão repletas de empobrecidos. Mas também há pobres frequentando shoppings luxuosos. Se existem milhares de pobres andarilhos, exitem ainda outros que andam em carros importados. Miseráveis ora moram debaixo de pontes, ora compram apartamento em Miami.
Continuei caminhando, desta vez voltando para casa. No trajeto, os rostos se multiplicavam e os passos se confundiam. A dor nos dedos já denunciava os calos futuros. Ainda pensava naquele São Francisco regresso. O que ele estaria fazendo ali?
Porquanto Jesus, abdicando de riqueza infinitamente maior, veio para os pobres de corpo e espírito. Mas muitos deles continuaram paupérrimos. O que mantém o pobre acorrentado à sua condição de pobreza? Decerto tem a ver com a voz de manteiga que insiste no anúncio das ofertas imperdíveis do dia. Compre, compre, compre! À vista com desconto, ou, a prazo sem juros e parcelas a perder de vista. Empobreça-se! É o que deveria dizer.
Quanto pior, é a voz que sai do interior da alma: venda-se! Entregue seu bem mais precioso, sua vida, para alcançar ambições desenfreadas. Assim se perpetua a miséria, a fome, a corrupção, o descaso dos poderosos, a desigualdade, a injustiça humana...
São estes os matizes do nosso século. Neste mercado tudo se vende e se compra, menos alegria verdadeira. Há de ser por isso que as cidades estão tão tristes.
Afinal, o que São Francisco estaria fazendo ali?
Cheguei à avenida principal da cidade. Guardadas as devidas proporções, pode-se afirmar que corresponde à aorta de Campinas. Pergunto-me o que há nela de maior, se não o número de pessoas circulantes. Este povo é como sangue que oxigena as artérias urbanas. O sangue que, paradoxalmente, padece de vida.
Atrelada a esta imagem, seguiu-se uma cena que me deixou consternada. À margem da passagem dos pedestres, um garoto dormia encolhido no degrau sujo, desconfortável e gelado de uma fachada comercial. O pobrezinho aparentava ter no máximo doze anos. Mesmo com rosto encardido, as feições bonitas de criança se sobressaíam.
Onde estaria aquele São Francisco?
Não estava ali para acalentá-lo. Não envovelveria aquele pequeno corpo maltrapilho entre os braços...
Por outro lado, eu estava lá, e por seguir o fluxo, quase passei reto de onde o garoto dormia. Parei. Remexi dentro da sacola que apertava um dos meus braços. Tirei de dentro, leite achocolatado e mini-bolo, que levava para meu filho. Havia diante de mim outro filho faminto.
Questionei-me em qual sarjeta estaria sua mãe. São Francisco estaria a procurá-la?
Voltei-me alguns passos, procurando a melhor maneira de deixar os alimentos sem que o acordasse, e ao mesmo tempo, que fossem facilmente encontrados pelo garoto.
Saí de lá envergonhada. Em parte pela pobreza do lanche que tinha para lhe oferecer naquele momento, e em parte pela pobreza espiritual que envenena a humanidade. Decerto, o mundo não carece de mais artefatos, pensei para mim. Aliás, está cheio até as bicas de tanta parafernália.
Absorta em meus pensamentos, logo estava em casa. Ainda contagiada pelos acontecimentos da manhã, esqueci-me da hora de comer. Também me esqueci de guardar as compras. Contudo, não me esqueci de que lá fora ainda existe esse menino dormindo ao pé do comércio, se não me engano, de uma padaria.
Tudo indica que, na bolsa comercial, uma alma está valendo menos do que uma penca de bananas.

Um comentário:

Ester disse...

Intenso.
Fiquei imaginando a reação do menino quando acordou e viu o bolo e o achocolatado.


"Uma alma está valendo menos que uma penca de bananas."