sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Descobertas

Graças ao bebê, descobri que a rua em que moramos começa a passarinhar por volta das quatro da matina. Todas as madrugadas, nesse horário, a passarinhada sonoriza difusamente na janela do nosso quarto. Quanto a mim, fico perplexa ao tentar inferir se são todos de uma mesma ninhada ou se são várias ninhadas acordando juntas. Acho que me aflige pensar em uma única mãezinha dando conta de tantos pássaros esfomeados antes do sol raiar. Um dia, prometo: abro a nossa janela para conferir a nuvem de pássaros disputando a atenção com o luar. O que me falta é coragem para descobrir que a única mãezinha acordada, alimentando a cria, seja eu.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Sobre essa que vos escreve

Se até o final da vida eu não publicar um livro, darei-me por contente se bordar uma colcha de retalhos.  Escritores e artesãos tem muito em comum, uma vez que dedicam seus dias e noites à tênue tarefa de alinhavar cada qual a sua matéria prima. No caso do escritor, faz o casamento das palavras com o papel, ainda que em uma tela de computador. Já o artesão faz a emenda dos retalhos e reconstrói a vida do próprio tecido.
Por isso que me contentaria e muito, ficar somente na colcha de retalhos, pois, afinal, que são estórias se não um apanhado de fragmentos que sobram da confecção de extensas vivências? E aparas não merecem desprezo só porque não participaram da peça de roupa. Que esperem silenciosas por seus pares quando, enfim, contínuas, terão voz para narrar o enredo por detrás de suas estampas.
    Ninguém escreve ou borda sem a catálise do suor e das idéias. Imagino os dedos picotados do artesão, e deles fluindo gotículas mornas de sangue. E os dedos do escritor, recortados por palavras afiadas que fluem esporádicas como gotículas de sangue. No fim das contas, ambos concordariam, o retalho é que dará corpo ao efeito uníssono de suas obras.