quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Na cidade...


O que escrever sobre uma quinta-feira úmida?


Os chuviscos trouxeram na carona um frio rabugento que gela a ponta dos dedos da gente, e a ponta do nariz dos mais sensíveis. A cidade está desbotada, a paisagem urbana exibe uma monotonia pálida. Assim mesmo, faça chuva ou sol, os carros sobem a avenida rangendo os pneus pelo asfalto irregular.


Os ruídos transmitem mesmice e se espalham pelo ambiente das ruas em redor, sobressaindo-se perfeitamente ao barulho dos trabalhadores que emprestam vida à selva de pedra. A cacofonia moderna vai perdendo intensidade, mas nunca o ritmo, conforme sobe em direção aos últimos andares dos edifícios de concreto, erigidos em algum tempo, sob a superfície que sustenta este mundo.


As paredes encardidas dos prédios encobrem a existência de homens, mulheres e crianças, vivendo suas vidas, tal como pequenas unidades funcionais que fazem respirar as entranhas compartimentadas destas construções.


A cidade tem sempre a mesma feição, o mesmo jeito indiferente, embora o tempo desgaste tanto o concreto, quanto em maior escala, o povo que faz nele seu ninho e em seu torno o ganha pão. Portanto, não há nada de novo embaixo do céu que se faça notar, além da data de 20 de agosto de 2009.

Essa sim, uma novidade que vale a pena comemorar e viver!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Quem sou eu?



Dizem que errar é humano, mas há quem diga que errar é “humanas”. Minha mãe costuma contar que quando adolescente sonhava em cursar letras. Acabou se formando em serviço social. Na adolescência, eu amava aulas de história e redigia por paixão. Pois bem: ocorre que me formei em biologia. Parece que, neste caso em particular, errar é biológico.
Devo fazer a ressalva de que no mesmo período em que me empolgava com aulas de História do Brasil e me dedicava com afinco à leitura e escrita, também colecionava recortes de jornal das matérias que estampavam o caderno de Ciências. Meu interesse abraçava as últimas descobertas no estudo do câncer, assunto que me instigava e seduzia. Lia com avidez cada informação, guardava todos aqueles pedaços de jornal numa pasta azul de elástico, pobrezinha, tão surrada que era.
Relendo o que escrevi, confesso ficar perplexa comigo mesma. Como é possível alguém se interessar por história, letras e biologia ao mesmo tempo? Salvo os mais antigos que se formaram em História Natural, que obviamente, nada tem a ver com a Revolução Francesa. Enquanto isso, meus colegas de profissão apresentam aptidão natural por matemática. Super compreensível. Assim como a biologia, é uma ciência que tende a ser exata.
Nunca me relacionei bem com números, em meu universo só gravitam letras. Não se explica como alguém de espírito tão subjetivo ousou estudar biologia... A questão é se existe espaço para este perfil na carreira de pesquisa médica. Existe?Ainda me pergunto como vim parar aqui. O que faço usando jaleco branco, enquanto manipulo um frasco com cultura de células. Esta sou eu? Por outro lado, amar literatura não faz de mim uma linguista em potencial. Não conheço um milésimo da arte da escrita, assim como não domino a técnica científica.
Levei cinco anos para concluir o doutorado, uma verdadeira epopéia que me custou suor e muito sangue (bem, nem tanto o meu...). Ao concluir o trabalho experimental, considerei ser este o momento perfeito para me redimir do sofrimento, dedicando-me ao que me dava prazer: escrever. Construí cuidadosamente a introdução da tese de doutorado, à semelhança de quem alinhava o primeiro texto.
“Gongórico” foi o estranho elogio que recebi do meu ex-orientador, enquanto vomitava seu discurso inflamado sobre como deve ser um texto aos moldes científicos. Deu-me a entender que transformei o melanoma em poesia. Discordo integralmente, embora, volta e meia este comentário me venha à mente colocando à prova minha vocação.
Aos trinta e um anos de vida, ainda não possuo argumentos sólidos que me convençam de que um ou outro seja meu nicho. Não me considero boa o suficiente em nenhuma das duas coisas. Ainda assim, continuo trabalhando com pesquisa científica médica, oportunidade que sonhava receber da vida, quando colecionava as notícias apocalípticas do Caderno de Ciências.
Hoje compreendo mais nitidamente a importância deste trabalho, mas sem o mesmo romantismo que me empurrou a fazer esta escolha. Talvez por causa da realidade científica brasileira, que prepara e depois desampara.
Estou ciente de que permaneço neste cenário, mais por persistência (leia-se teimosia) do que por aptidão cega e desmedida. Minha eterna motivação é que devo dar o meu melhor, ainda que contribua com uma mísera gota de conhecimento. Há sim, boa parte de mim que se familiariza com a figura do cientista maluco. Utopia? Pode ser que sim, mas são as ditas utopias que alimentam a alma da gente de esperança.
Decididamente, tenho várias personalidades...Tem dias que acordo tão bióloga. Já tem dias que acordo tão somente travestida de aspirante à escritora, nada a ver com a outra faceta. Peço um tempo para o laboratório de pesquisa. Foi o que me aconteceu hoje. Como conseqüência, eis aqui um desabafo pontual. Liberto do pensamento científico.
No mais, sou mãe sempre, independente da escolha profissional, e por hora, tem um garoto muito especial ziguezagueando pela casa, rondando a mãe sentada diante de um computador. Sou toda sua, filho!
O ser ou não ser pode muito bem ficar para depois...