sexta-feira, 9 de setembro de 2016

À flor da pele

     As crianças foram cruéis com o menino. Não entenderam, ou não tiveram a oportunidade de entender, que ele havia passado por poucas e boas quando nasceu miúdo como bicho da maça. E havia renascido das cinzas no mínimo três vezes, daquelas que conseguimos contabilizar.
      O menino, que não é matemático, representa os 4% da genética materna e o 1% da genética populacional. E quando cresceu, descobriu suas cicatrizes. As crianças também as descobriram nele. Algumas fizeram chacotas.
        Ele chegou para a mãe chorando as pitangas que colheu na escola. Numa outra escola, aliás. Mas não se pode culpar as crianças pela ausência de entendimento. Um dia muitas compreenderão que as cicatrizes são carimbos de sobrevivência que a gente carrega ora na pele, ora no coração.
         A do menino é visível, em outros casos, porém, permanecem camufladas e doem por um bocado de tempo. Ninguém imagina que existam marcas tão profundas. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O braço e a boca

Uma das vezes em que cheguei atrasada à aula de anatomia me aguardava uma peça anatômica exposta no centro da mesa usada nas aulas práticas. Tratava-se de um braço destacado do todo, jazido sem dono, sem memória, sem nome e sem viço, que eu deveria dissecar, embora não estivesse preparada e nunca estarei para o fazer. Alguém, por favor, informe ao professor.
Foi bem por isso que declinei à aula. Aquele braço, que deveria ser meu durante uma hora e meia, não me pertenceria. Eu não conseguiria abri-lo, pinçá-lo, remexê-lo, fixar os olhos nas estruturas e dar-lhes os nomes. Nunca, assim como nunca me esqueci dele, “o braço”.
Porque me assombra a frieza do dissecamento tanto quanto do ar condicionado daquele laboratório. E porque hoje amanheci me sentindo dissecada, exposta até o osso. Alguém pinçou nervo a nervo do meu pertencimento e, depois de destrinchadas e estudadas, tanto as peças anatômicas quanto o eu não retornam ao que eram antes de serem violados. Parece que tudo fica frouxo e sem encaixe ainda que seus pertences tenham sido retirados ao método japonês de organização.
Resta-me empurrar o que sobrou de mim para dentro e esperar que o tempo me acomode no formato original. De vez em quando uma parte de nós resolve trair o conjunto da obra. Ao contrário do que a boca nos diz, não somos nossos.



sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Feliz Ano Novo

"Ano novo, mundo velho. A única diferença será o calendário. Nem mesmo a agenda, se for permanente. Ano novo, rituais velhos. Felicidade que roupa nova não renova. Ano novo, problemas velhos. Adentram o ano dentro da gente e não saem na foto... Ano novo é continuidade."

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Mãe, mãezinha.

"O menino tem uma mãe e uma mãezinha. A mãe é aquela que ensina os trejeitos maternos e de quem a mãezinha sorve as falas. A autêntica e a que faz o papel de. Pobre do menino que ouve a chamada da mãe e depois a da mãezinha. Uma indaga: 'Já fez a lição de casa?' muitas vezes sabendo a resposta. A outra, mãezinha, de tanto escutar a mãe, aprendeu a indagar também. Mas ela só tem dois anos e tanto lhe faz a resposta!"

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Aprenda, de uma vez por todas...

"O discurso que agrada é tamanho único, ou seja, deve cair bem em todas as consciências. Não pode, por exemplo, conter termos sobre os quais recaia a maldição de moralista -seria indecoroso. A punição para quem cometer o deslize será a exclusão social. O ostracismo é o pior pesadelo da geração facebook."

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Descobertas

Graças ao bebê, descobri que a rua em que moramos começa a passarinhar por volta das quatro da matina. Todas as madrugadas, nesse horário, a passarinhada sonoriza difusamente na janela do nosso quarto. Quanto a mim, fico perplexa ao tentar inferir se são todos de uma mesma ninhada ou se são várias ninhadas acordando juntas. Acho que me aflige pensar em uma única mãezinha dando conta de tantos pássaros esfomeados antes do sol raiar. Um dia, prometo: abro a nossa janela para conferir a nuvem de pássaros disputando a atenção com o luar. O que me falta é coragem para descobrir que a única mãezinha acordada, alimentando a cria, seja eu.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Sobre essa que vos escreve

Se até o final da vida eu não publicar um livro, darei-me por contente se bordar uma colcha de retalhos.  Escritores e artesãos tem muito em comum, uma vez que dedicam seus dias e noites à tênue tarefa de alinhavar cada qual a sua matéria prima. No caso do escritor, faz o casamento das palavras com o papel, ainda que em uma tela de computador. Já o artesão faz a emenda dos retalhos e reconstrói a vida do próprio tecido.
Por isso que me contentaria e muito, ficar somente na colcha de retalhos, pois, afinal, que são estórias se não um apanhado de fragmentos que sobram da confecção de extensas vivências? E aparas não merecem desprezo só porque não participaram da peça de roupa. Que esperem silenciosas por seus pares quando, enfim, contínuas, terão voz para narrar o enredo por detrás de suas estampas.
    Ninguém escreve ou borda sem a catálise do suor e das idéias. Imagino os dedos picotados do artesão, e deles fluindo gotículas mornas de sangue. E os dedos do escritor, recortados por palavras afiadas que fluem esporádicas como gotículas de sangue. No fim das contas, ambos concordariam, o retalho é que dará corpo ao efeito uníssono de suas obras.


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Nem tudo valerá a pena

Por mais brilhante poeta e exímio pensador que tenha sido Fernando Pessoa, reservo-me o direito de colocar em xeque a máxima de que "tudo vale a pena". 
Em relação à alma não ser pequena, não faço objeção.Porém, hoje, minha pergunta é: Quanto, de fato, vale a pena?
Se a referência for a pena que escreve, vá lá! Entendo como produto da subjetividade. Caso contrário, estamos supervalorizando a pena, tornando-a justificativa para todas as nossas escolhas.Tenho para mim que a pena não vale isso tudo. Deve ser balela de passarinho.
Em verdade, essa expressão sempre me incomodou. Também tenho minhas rabugices. Não, nem tudo valerá... A pena mal vale uma postagem. 
É o que dá acordar atravessada.

domingo, 27 de setembro de 2015

Um "cadinho" de texto

Há quem diga que escreve como forma de protesto. Pois eu digo, em minha suave rebeldia, que quando não escrevo é que protesto. Nada muito sério, aliás. Geralmente protesto contra  o pouco tempo que disponho para ouvir o que a alma tem para me dizer ou para sorver os pequenos detalhes do dia a dia. E isso me é tão triste; não ter tempo é quase pior do que não ter inspiração. Digo-lhes e afirmo, é sentar-me em frente ao dito cujo computador para o querido bebê chorar. Não há tempo sequer para descrever a ternura que sinto ao tomar o pequerrucho nos braços e afagar-lhe os cabelos. E a menina chora a partir de um vértice da sala...É hora de "Masha e o Urso"...Pronto: Acabo de perder o computador.
Por enquanto os dias serão longos e os textos curtos.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

E depois de dois anos

Tenho um caso de amor com este blog. Ficamos incomunicáveis, separados por um oceano; cada qual em sua ilha. No desespero eu me refugiei nas tramas das redes sociais, mas não foi a mesma coisa. Entendo que nas redes somos peixes que não retornam ao mar. Contudo, esse blog, sempre foi o meu mar. Então decidi fazer o caminho da volta, ainda que contra a maré. Uma vez gota no oceano, sempre serei mar. E cá estou: gota novamente, ensaiando ser adicta da próxima curtida.
Aqui eu ecoo. Grito, se necessário. Volto e me revolto quantas vezes o vento me mover...Cansei de me quebrar na praia.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Memórias


          O dia nove de julho me faz lembrar meu avô paterno, Silvio Penteado, e os capítulos da História que contava para nós.
      Ele gostava de narrar os anos que os netos não viveram, mas que desfilavam diante dos olhos da nossa imaginação: a Segunda Guerra Mundial, a Era Vargas, a Revolução Constitucionalista, sendo esse último o seu trecho preferido.
      Orgulhava-se do fato de ter vivido aquele tempo, sobretudo porque sua Piracicaba havia sido representada no conflito entre os jovens paulistas revolucionários e as tropas do governo getulista, na capital do Estado. Piracicaba não só foi representada na Praça da República, como também na sigla MMDC, correspondente à inicial do sobrenome dos quatro jovens revolucionários mortos no conflito.
      Tanto tempo se passou desde aquelas conversas com meu avô - falecido há treze anos – que já nem me recordo qual daqueles quatro jovens era natural de Piracicaba, e responsável por despertar o entusiasmo nos olhos castanhos daquele senhor.
       A maior parte do que conheci sobre o episódio foi por meio da visão dele, de modo que não saberia julgar esse acontecimento, ocorrido em 1932. Mas seja lá quem estivesse com a razão, se São Paulo ou o resto do país - a essa altura nem vem ao caso -, nenhuma linha que li a esse respeito se compara ao que escutei na voz do meu avô, uma testemunha ocular dos fatos, se posso assim dizer.
     Pudéramos, hoje, levar adiante esse exemplo e não deixar morrer a nossa história. A realidade que nossos filhos e netos conhecerão, ou deixarão de conhecer, dependerá de ser contada por nós e não somente pelos livros didáticos. Sem dúvida, os grandes autores deixam sua marca e influência, contudo, somos nós, os anônimos do dia a dia, que transmitimos um legado. Resta-nos a incumbência de escrevê-lo.







terça-feira, 9 de julho de 2013

E ele pensa ser rei

            No café da manhã, entre um gole e outro de leite com chocolate, ele me fez a mais deliciosa declaração de autoconhecimento que já ouvi de um garoto de seis anos:
   - Mamãe, eu sou o rei da pipoca, do pão de mel e da batatinha Ruffles.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pedra, papel, tesoura


          Faz tempo que estou pra colocar no papel um acontecimento que me marcou profundamente, mas não encontro começo para o enredo. Contudo, de hoje não passa, portanto, aí vai...
     Há alguns anos atrás, o Gustavo ainda fazia acompanhamento com a terapeuta ocupacional, quando, numa das sessões, ela me garantiu que o menino teria muita dificuldade para usar a tesoura. “Falta desenvolver a coordenação motora grossa, o que dirá a fina...”, foi o que escutei naquela manhã.
    A declaração da profissional foi suficiente para me entristecer nos dias posteriores, haja vista, o menino já completaria quatro anos. Pensei comigo, qual alarde haveria em segurar e manipular a dita cuja da tesoura. Mas, enfim... Foi o que ela disse.
   Fiquei por um bom tempo ruminando a informação, quase já aceitando a “profecia”. No entanto, o passar dos meses revelou que nem todas as previsões necessariamente acontecem na vida da gente conforme dita a teoria. As pessoas, inclusive as bem intencionadas, nos afirmam certas verdades que, ora se aplicam, ora não se aplicam à nossa realidade. Bem ou mal, aquilo ficou gravado na minha memória em letras garrafais.
     Nesse ínterim, o Gustavo cresceu mais um pouco, chegando aos dias de hoje, - mais precisamente a 2013- ano em que ganhou uma irmã. Também eu cheguei aonde gostaria de chegar nesse relato:
    Dia desses, enquanto trocava a fralda da Lydia, percebi a etiqueta da roupinha de bebê precisando ser cortada. Solicitei a ajuda do menino. Pedi que pegasse uma tesoura. Dali a pouco ele entra no quarto, abrindo e fechando as lâminas da tesoura que trazia na mão:
     -O que você vai fazer com essa tesoura, mamãe? Cuidado, hein?
   Achei graça da preocupação do menino. É claro que tomaria cuidado. Eu sou a mãe, poxa! Por outro lado, foi impossível não me emocionar ao vê-lo entrar no quarto segurando aquela tesoura com tanta naturalidade, como se anteriormente não houvesse acontecido a manhã daquela declaração fatídica para meus anseios de mãe.
   Foi então que a ficha caiu, digamos assim. É fato que as dificuldades de coordenação ainda existem...Contudo, atinei que, aos cinco anos, o Gustavo cortava e recortava sozinho, sem nossa ajuda, prova de que nem tudo que a gente pensa ser absoluto, realmente será.
    Por essa e por outras é que insisto comigo mesma de que não vale à pena sofrer com fatos preditos, em geral, enquanto não passam de meras palavras. Vivamos um dia por vez, sem preconizar ansiedades, afinal, para cada dia basta o seu próprio mal.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Uruguaiana, 399

            Geralmente, quando estou muito cansada e me sento por alguns minutos em frente a uma janela iluminada, fecho os olhos, e imagino morar em uma rua de casas construídas com tijolos à vista, rodeadas por jardins coloridos. Para cada casa há uma janela generosa, emoldurada com esquadrias de madeira, e uma varanda nos mesmos tons de marrom, completando o bucolismo da cena.
      Ora, vejam... Essa rua não é a rua da minha casa, o que não quer dizer que a rua da minha casa seja melhor ou pior do que aquela. A rua onde moro, por dezenas de razões, é muito peculiar, a começar pelo nome que é nome de uma cidade - Uruguaiana- onde, por sinal, nunca estive.
      E que interessante uma rua com complexo de cidade (e será que não o é?)
      Aqui - e talvez somente aqui - existe uma árvore sonora, não por acaso localizada em frente à padaria. Por volta das cinco horas da tarde, os pássaros das ruas adjacentes se recolhem todos para lá e ficam a trocar experiências acumuladas do dia que se finda. Imagino como a vida de um pássaro da cidade deva ser agitada, a julgar pela algazarra do “happy hour” da passarada. Se alguém um dia lhe perguntar sobre um point quente na Uruguaiana, aponte para aquela árvore e responda: ”É logo ali!”
     Sim... Já sei que sentirei saudade daqueles pássaros. E do alvoroço que eles fazem ao final das tardes.
     Outra característica dessa rua são as guias das calçadas, todas tão altas que, por várias vezes, já tive medo de torcer o pé. Pior, medo de derrubar o bebê de dentro do carrinho. É possível que algum forasteiro, ao caminhar por esses passeios altivos, suponha não haver deficientes físicos residentes na Rua Uruguaiana, o que seria ledo engano de se pensar, já que residem e resistem bravamente.
      E para completar, poderia citar tantas outras curiosidades típicas desse logradouro, mas decidi focar o fechamento desse texto num edifício especial, que por pouco não escapa da Rua Uruguaiana para a Rua Barão de Jaguara: o colégio que ocupa a esquina em frente ao prédio de número 399.
      Seis anos vividos no mesmo endereço, e apenas seis meses dentro desse colégio. Sentirei saudades, embora não tenha sido eu a aluna daquela professora dedicada, e nem tenha sido eu a cruzar esbaforida por aqueles pátios, ou a compartilhar do momento de lanche com os colegas da classe. Mas, creiam, é como se tivesse sido. Cheguei a essa altura da vida para perceber que a infância da gente acontece uma vez apenas, para que tenhamos gosto em acompanhar a infância dos filhos que Deus nos dá; sejam os filhos de sangue, sejam os filhos de coração.
      E já que toda despedida tende a ser triste, melhor não colocar ponto final nesse texto e chamá-lo apenas de capítulo.Por conseguinte, esse será o primeiro.