quinta-feira, 21 de maio de 2009

21 de maio: um ano e onze meses de vida do Gustavo.

Nesta manhã, o sol emprestou àquela praça uma porção generosa de sua régia luz. A praça, mais festiva que de costume, recebeu a todos os seus convivas habituais, entre humanos, pombos e cachorros, para uma celebração em pleno outono tropical. Encostado junto a uma árvore, coberta por ramos intumescidos de folhagem cor oliva, estava um vendedor de sorvetes com semblante abatido, cujo vulto estático e mudo contrastava com o cenário dinâmico e pitoresco do largo. Trazia os olhos semicerrados e fronte ligeiramente voltada para trás, traduzindo uma pacata melancolia como a de alguém que não adentrou ao recinto da festa por chegar sem o convite, esquivando-se desta feita, de compartilhar a intimidade dos personagens da praça.
Um pouco mais adiante, o sol vibrava amarelo no chafariz circundado pelos pombos, que jubilavam, ao seu modo, a manhã de maio. Em gestos velozes e instintivos, banhavam-se de água e luz, à vista dos olhos matreiros daquele menino que ama a praça, em igual tom ao peixe que ama as águas doces do rio. Como se divertia à custa daquele bando de pássaros! Sorria com seus grandes olhos azuis-esverdeados, iluminados pela alma em êxtase. Percebeu ao seu lado, que alguns pombos se aventuravam a ciscar os veios do chão. Correu-lhes ao encontro. Vibrava consigo mesmo, ao menor movimento das asas, dos bicos e das penas que sacolejavam livres na brisa morosa. Estalava beijos voláteis dirigidos ao bando saltitante de pombos, aos senhores sentados no banco do jardim, e não menos, aos transeuntes que se surpreendiam com a espontânea receptividade nos lábios daquela criança.
Alguns beijos furtivos eram carregados por uma fresta de vento, indo ao encontro dos beijos impetuosos de um casal que namorava num banco da praça; alheios à existência das demais vidas e dos olhares curiosos que cintilavam em derredor. Apenas os passos cadenciados e delicadamente escandalosos do menino, conseguiram abstrair os namorados daquela paixão arrebatadora. Capturados pela realidade por breve instante, renderam-se ao riso tímido e balbuciaram algumas palavras, motivados por aquele pequeno que apostava corrida com o vento, enquanto media forças com a boca da calça de veludo azul, bem maior do que seus dois anos incompletos.
Alguns minutos depois, o casal já voltara à dura tarefa de amar e o menino completara uma volta em torno do tronco caloso de árvore, que segundos antes, servira de amparo ao nosso sorveteiro. Dois senhores de avançada idade, outrora sentados ao lado de um jardim florido, onde se expunham à luz do sol, rumaram em direção ao pequeno que retumbava aqui e acolá, de acordo com o rumo dos pombos. Encontraram-se de súbito, ou não se sabe se, por ato premeditado do destino, lado a lado, aproximando os pólos extremos da existência; no enlace contíguo entre o novo e o velho. Uma cena, no mínimo, tocante para quem acompanhava o desenrolar daquela história como mera coadjuvante. Por fim, o sorriso gentil daqueles senhores recebeu como recompensa os beijos crispados do menino, risonho.
A manhã também reservou encontros tumultuados entre os freqüentadores caninos da praça, que passeavam na companhia de senhoras tagarelas. As mulheres, animadíssimas, tocavam a conversa com um olho cá e outro lá, sem perder de vista seus cachorros afoitos, que decididos, atazanavam os pobres dos pombos. O menino presenciou o revoar dos pássaros, incomodados pelas constantes interrupções, por conta das quais mal conseguiam engolir o restolho de comida que alguém depositara num cantinho da praça. Para o menino, cada revoada resultava em braços e pernas agitados descoordenadamente e olhares de vivas. Em algum momento, notei seus olhos marejados, encapados por um brilho intenso.
Surpreende-me esta praça; palco de encontros, desencontros, descobertas e, vez ou outra, de mesmices bucólicas. Naquele quadrilátero arborizado, onde crianças procuram aventuras e adultos fogem das desventuras urbanas, tudo ou nada podem ocorrer em uníssono, repentinos. Hoje, ocorreu-me um pensamento novo a respeito desta praça; ela pertence ao menino, que aprendeu a amá-la despretensiosamente. Por este motivo, foi naquela ilha-verde que comemoramos seus quase dois anos de vida. Bem ao gosto do menino, rodeado de pombos e gentes peculiares.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Mais uma vez, a praça.

Hoje, voltamos àquela praça de sempre, que me pareceu excepcionalmente apática. Ou talvez, eu que estivesse. O fato é que os pombos não estavam mais lá; e ainda nem era cinco da tarde. Será que os pombos não moram ali? Quem sabe sejam apenas funcionários, assim como deve ser o chafariz, que trabalha melhor nos feriados e finais de semana. Porque faltaram os pombos, o menino quase ficou sem divertimento. Logo que avistou sua praça, ele se assanhou e por pouco não saltou do meu colo. Ganhou liberdade junto ao chão e saiu à procura dos amigos alados. Vasculhou o coreto e os canteiros de flores, na esperança de encontrar unzinho que fosse, mas a empreitada não obteve sucesso. Da próxima vez, prometo que o levo mais cedo, ainda quando os pombos estiverem curtindo o ócio da praça.
Por fim, o que salvou o passeio foram alguns cachorros que tomaram o lugar das aves, correndo livres, leves e soltos de um canto para o outro, demarcando território. Cheguei até a desconfiar que os cães tivessem lanchado os pombos; mas não acredito que sejam suficientemente sagazes para caçar e arregaçar as pobres aves. Cachorros da cidade são mal acostumados, assim como a gente. Já ouvi falar de cachorros que fazem festa de aniversário, freqüentam spas, mas isso é assunto para outro dia.
Hoje a praça me inspirou muito pouco. Já não digo o mesmo pelo menino, para quem, tudo tem cheiro de descoberta. Foi muito sincero ao se mostrar insatisfeito por vir embora. Haja vista, toda vez que a gente passa ao lado daquela praça, ele se volta para ela e abre os braços, como se quisesse abraçá-la mais uma vez.
Parece que o encanto daquele lugar é a mais pura e simples liberdade que o menino usufrui enquanto corre e ri à vontade. Ele não precisa mais do que isso para estar feliz, ser criança. Vai ver, esse é o segredo.