sábado, 25 de fevereiro de 2012

Quatro Anos...


          ...É o tempo exato que nos separa daquela manhã de segunda-feira, no Hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Pela terceira vez em menos de um ano, estávamos entregando nosso bebê nas mãos da equipe de cirurgiões cardiopediatras daquele hospital. Gustavo nasceu premiado com uma aorta que precisava ser “aberta” e um septo cardíaco que precisava ser “fechado”.
            Entendíamos que Deus estava conosco, embora, nem sempre Sua voz fosse claramente discernida, tamanho o turbilhão de emoções que vivíamos. Ainda assim, jamais Ele permitiu que O perdêssemos de nossas vistas.
            Neste ínterim, não foram poucas as situações que fugiram do nosso controle: pós-cirúrgicos marcados por incertezas; intercorrências neurológicas... Em contrapartida, conheci o Deus que se revela nas madrugadas escuras e sombrias; que não se incomoda em “pernoitar” num quarto de enfermaria. Ali mesmo, reconheci o Deus da minha infância. “O Deus dos antigos, dos nossos antepassados”.
            Passados quatro anos desde esta última internação, permanece o legado construído sobre uma das experiências mais tensas e dolorosas que vivemos. Não penso que, a soberania de Deus seja provada pela cura do nosso filho, ainda que muito tenhamos nos alegrado quando essas palavras foram anunciadas pelo Dr José Pedro da Silva. Tampouco, que a fidelidade de Deus seja provada pelos exames clínicos que atestam as cirurgias bem sucedidas. Também isso, mas não apenas isso!
            A soberania e fidelidade de Deus são provadas porquanto Ele nos permitiu entrar num grande vale, dentro do qual nos conduziu a momentos reais de paz e esperança. Na ausência de boas notícias e diagnósticos promissores, Ele providenciou alento para nossa alma. “Quando passar pelo vale da sombra e da morte, não temerei mal algum, porque Tu estás comigo”. Sim, aprendemos sobre morte e vida, passando pelo vale, onde não existe outra luz senão Daquele que é poderoso para conduzir nossos pensamentos para a segurança da Sua presença.
            Costumo brincar que, de mim, o Gustavo herdou os olhos e o coração (no demais, é cópia do pai). Ambos nascemos com olhos expressivos e com um “buraquinho” entre os dois ventrículos cardíacos. Porém, nem todos os buraquinhos no coração da gente são herdados de nascimento. A maioria deles surge no decorrer da vida; às vezes resultam de uma perda muito dolorida, outras, de uma frustração por demais profunda.
            O “buraquinho” no coração do Gustavo alcançava 10 mm, antes de ser fechado pelas hábeis mãos dos médicos. Talvez o “buraquinho” que você carregue em seu coração alcance dimensões irreparáveis por uma ou duas cirurgias. No decorrer desses quatro anos, reconheço a mão de Deus fechando alguns desses “buraquinhos” que foram esculpidos em meu coração pelas situações incertas da vida.
            Quatro anos é a quantidade de tempo que nos separa de um acontecimento que marcou nossa história como família. Contudo, Deus só precisa de um segundo de nosso tempo para implantar uma nova esperança dentro do nosso coração: “Eis que faço uma coisa nova, agora sairá à luz; porventura não a percebeis? Eis que porei um caminho no deserto, e rios no ermo.” Amém.
           

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

As imprevisibilidades da maternidade


            
Não raro, questiono-me de onde teria vindo este pragmatismo maternal que me possui sem mais, nem menos. Mas é só vasculhar nos arquivos do meu passado recente para tecer relações entre meu atual estado de mãe com o de cientista, que um dia aspirei a ser.
Anos de prática em laboratório me deixaram de herança o hábito de não guardar pequenas porções de alimentos no freezer. Absolutamente! Eu os guardo em alíquotas. E nada mais técnico do que aliquotar feijão. Se para uma simples tarefa cotidiana sofri os efeitos da Ciência, o que dirá na tarefa de ser mãe.
Para início de conversa, eu me lembro de que ao pegar meu querido bebê no colo, ainda com 12 horas de vida, um frio percorreu minha espinha (garanto que não era efeito rebote da raquidiana) ao imaginar que aquela frágil criatura em meus braços tinha menos tempo de vida do que eu costumava manter células em cultura: quatro dias entre uma passagem e outra.
            Da cultura de células herdei o excesso de zelo por aquelas unidades de vida microscópicas que chegava a chamar de filhas no auge da minha loucura (leia-se: em final de tese). Naquele tempo, o que conhecia sobre a maternidade era cultivar minhas linhagens celulares em condições de temperatura, acidez e níveis de gás carbônico, extremamente controlados. Se tudo estivesse de acordo, suprindo-as com um bom meio de cultura, esperava bons resultados em meus experimentos. Ainda assim, nada era muito preciso. Existiam as contaminações ocasionais, combatidas com boas doses de antibiótico de amplo espectro e no pior dos casos, quando não se resolvia bombasticamente o problema, descartavam-se as células “bichadas”, e nova alíquota era descongelada para outros tantos experimentos.
         É fato que, inconscientemente, incorporei este rigor científico e o trouxe na mala da maternidade, com a ressalva de que tenho plena consciência de que a maternidade não é um experimento. Ela é definitiva. E como!
     Porém, em relação aos cuidados com gente, não tenho como controlar as condições de temperatura - outono, primavera, inverno, verão - quanto menos prever mudanças drásticas causadas pelo efeito estufa. Portanto, dá-lhe crises alérgicas na minha criança, contra as quais não posso fazer muita coisa! Tirar o pó da casa? Já o faço! Acabar com a poeira do mundo? E quando acontecem as terríveis contaminações? Digo infecções. Não posso entupi-lo com o mais potente antibiótico, quanto menos descartá-lo e começar de novo.
            As variáveis são agora imprevisíveis e os desfechos de cada episódio também. Já tentei tomar as rédeas da situação, mas, naturalmente, não consigo. E nem quero. Sinto dizer que a Ciência me preparou para tudo, menos para este novo imprevisível. Embora eu imaginasse saber dominá-lo enquanto trabalhava diante de um fluxo laminar.
            Apesar disso, não troco a experiência desta maternidade pela primeira, ainda que tenha saudade das filhas microscópicas, com quem treinei ser responsável por vidas que dependam da minha. Aquelas criaturas que gerei de uma alíquota descongelada do nitrogênio líquido me renderam, no máximo, bons resultados. A criatura que gerei há quase cinco anos, mergulhado por nove meses numa estufa miraculosa, chamada útero, olhou para mim ontem, e disse: “te amo, mamãe.”

            Ah, as imprevisibilidades da maternidade...