terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Cicatrizes

Tenho algumas cicatrizes. A principal vai de cima a baixo do tórax, mas quase não se nota olhando de relance. É linda, sempre achei. Hoje a considero ainda mais linda porque não me deixa esquecer de que estou viva por milagre.
Quando pequena, gostava de passar o dedo e sentir a diferença na textura da pele. Está certo, não é lá muito lisinha, mas cada um dos pontos foi fechado por mãos habilidosas há trinta e (quase) um ano atrás. É o arremate de um minucioso trabalho feito por artesãos-médicos. Minha mãe comenta que naquela época não havia exames de imagem sofisticados quais os que dispomos hoje. Era tudo na raça, ou melhor, na “chapa”. Há trinta e poucos anos, a radiografia era a única tecnologia disponível para diagnóstico de cardiopatias. Não é milagre estar viva?
Volta e meia penso naqueles que fecharam o “buraco” do meu coração. Foi há alguns tantos anos... Certamente, corrigiram centenas de coraçõezinhos após ajustarem este que bate em mim. Desconheço o nome dos membros daquela equipe de cirurgiões, liderada pelo Dr. Adib Jatene. Quanto menos sou capaz de me lembrar da fisionomia deles. Entretanto, são alguns dos heróis humanos que marcaram minha infância, no lugar do Homem-Aranha ou Mulher-Maravilha. Sob influência destes ilustres desconhecidos, houve um tempo em minha vida que considerei a medicina como opção... Por isso, se não for muito tarde, meu muito obrigada a estes cirurgiões-doutores.
Além desta, tenho outra cicatriz, só que no punho esquerdo. Provavelmente, fruto de algum cateterismo que acompanha a cicatriz-mãe. Por coincidência fizeram-na em forma de cruz. Carrego uma pequena cruz comigo, que analogamente àquela Cruz, está vazia. Não tenho como escapar à comparação, desculpe-me. É mais forte do que eu. Simplesmente deixaram este “símbolo” em mim!
Meu filho também tem algumas cicatrizes (uma abaixo da escápula e outra no tórax, parecida com a minha). Passados trinta anos, as mãos habilidosas dos artesãos-médicos foram beneficiadas com o surgimento de novas técnicas e materiais cirúrgicos de última geração. Logo, a marca deixada no peito do meu pequeno, é mínima. Muito menor do que a minha, ancestral. Esta marca é mais um dos vínculos que nos une. Mas, diferente da minha cicatriz, a dele doeu. Em mim, pois não desejava vê-la em outro peito se não no meu.
Embora nos recorde os dias de sofrimento, uma cicatriz pode (e deve) ser vista com alegria. Depende dos olhos da gente. O simples fato de mostrá-la ao mundo é uma bela vitória. Por si só, não nos diferencia das pessoas, apesar de ser um diferencial. Só que traz um novo significado para o que pensamos ser a vida. Sobre minha primeira infância, dizem que eu abordava as pessoas mostrando-lhes minha cicatriz. À minha maneira entendia o significado especial que esta marca em meu peito representava para aqueles que me queriam bem.
Gosto de contar a história desta cicatriz, porque afinal, ela se tornou a minha história. Existem cicatrizes na história do meu pequenino, tanto quanto na de centenas de portadores de cardiopatias congênitas, espalhados por este Brasil. Dia desses serão eles que contarão histórias pra gente.
Quero que meu filho encare suas cicatrizes com naturalidade, como se tivessem vindo junto com ele. Comigo ainda é assim. Conforme a gente vai crescendo, aprende a não se esconder atrás delas, seja por vergonha ou autopiedade. O que não é diferente das cicatrizes da alma.
Importante é que, por trás destas marcas físicas, exista um coração grato.

Um comentário:

Paul disse...

Pois é Pri, as cicatrizes como símbolos de vitórias.. belas imagens.. As suas e as do Gu. São ambiguamentes marcas de sofrimento, dor, e de redenção, cura. A dor do seu filho foi sentida por ele, que provavelmente não se lembrará "conscientemente" desse sofrimento, e por você, que jamais esquecerá a dor de mãe de ver o filho passando pelo que passou. O mesmo aconteceu com sua mãe e com você: ela guarda na memória a sua dor. Enfim, gerações ligadas por muitos elos, incluindo as cicatrizes, as memórias, os marcos.