segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O braço e a boca

Uma das vezes em que cheguei atrasada à aula de anatomia me aguardava uma peça anatômica exposta no centro da mesa usada nas aulas práticas. Tratava-se de um braço destacado do todo, jazido sem dono, sem memória, sem nome e sem viço, que eu deveria dissecar, embora não estivesse preparada e nunca estarei para o fazer. Alguém, por favor, informe ao professor.
Foi bem por isso que declinei à aula. Aquele braço, que deveria ser meu durante uma hora e meia, não me pertenceria. Eu não conseguiria abri-lo, pinçá-lo, remexê-lo, fixar os olhos nas estruturas e dar-lhes os nomes. Nunca, assim como nunca me esqueci dele, “o braço”.
Porque me assombra a frieza do dissecamento tanto quanto do ar condicionado daquele laboratório. E porque hoje amanheci me sentindo dissecada, exposta até o osso. Alguém pinçou nervo a nervo do meu pertencimento e, depois de destrinchadas e estudadas, tanto as peças anatômicas quanto o eu não retornam ao que eram antes de serem violados. Parece que tudo fica frouxo e sem encaixe ainda que seus pertences tenham sido retirados ao método japonês de organização.
Resta-me empurrar o que sobrou de mim para dentro e esperar que o tempo me acomode no formato original. De vez em quando uma parte de nós resolve trair o conjunto da obra. Ao contrário do que a boca nos diz, não somos nossos.



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