Uma das vezes em que cheguei atrasada à
aula de anatomia me aguardava uma peça anatômica exposta no centro da mesa
usada nas aulas práticas. Tratava-se de um braço destacado do todo, jazido sem
dono, sem memória, sem nome e sem viço, que eu deveria dissecar, embora não
estivesse preparada e nunca estarei para o fazer. Alguém, por favor, informe ao
professor.
Foi bem por isso que declinei à aula.
Aquele braço, que deveria ser meu durante uma hora e meia, não me pertenceria.
Eu não conseguiria abri-lo, pinçá-lo, remexê-lo, fixar os olhos nas estruturas
e dar-lhes os nomes. Nunca, assim como nunca me esqueci dele, “o braço”.
Porque me assombra a frieza do
dissecamento tanto quanto do ar condicionado daquele laboratório. E porque hoje
amanheci me sentindo dissecada, exposta até o osso. Alguém pinçou nervo a nervo
do meu pertencimento e, depois de destrinchadas e estudadas, tanto as peças
anatômicas quanto o eu não retornam ao que eram antes de serem violados. Parece que
tudo fica frouxo e sem encaixe ainda que seus pertences tenham sido retirados
ao método japonês de organização.
Resta-me empurrar o que sobrou de mim para
dentro e esperar que o tempo me acomode no formato original. De vez em quando
uma parte de nós resolve trair o conjunto da obra. Ao contrário do que a
boca nos diz, não somos nossos.
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