quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Feito gente e gato

Como de costume, levantou-se da cama um tanto esquizofrênico. Estava para poucos amigos. Arqueou as pestanas cerradas e alisou os pelos do bigode. Um hábito matinal. Desejou um pouco de leite e logo ganhou o chão frio do quarto. Chegando à boca da cozinha, lembrou-se do prato. Diacho, onde o haviam colocado? Rodopiou pelo chão de porcelana branca e num só movimento, alcançou a bancada. O prato pintado à mão se estatelou no chão, produzindo uma chuva de pequenas setas pontiagudas. Esses doidos ainda me matam! Parecia dizer com os bigodes encostados nos cantos da boca. Um sorriso indiferente se formou ponta a ponta no rosto amassado.
Ia me esquecendo de contar que o ato espalhafatoso na cozinha gerou certo alvoroço no quarto vizinho. Ouviu-se dali uma exclamação na voz aguda de mulher, ainda atordoada de sono. Quase em uníssono, uma voz masculina procurava pelo autor da façanha. Tateava inultilmente a cama, esperando encontrá-lo. Os dois coitados, arrancados do aconchego proporcionado por uma pesada manta de patchwork, correram até a cozinha, onde encontraram o gato de olhar meigo e bigodes franzidos, como que se justificando por aquele ato falho.
Ambos se comoveram com a patética cena. A moça se inclinou em direção ao felino que, se fosse gente, teria como dar de ombros (porque parecia não se importar). Mas como era gato, caprichou num miado que soou como um irresistível pedido de desculpas. Querido, o importante é que não tenha se machucado, disse ela com gestos maternais. O homem se apressou em tirar todos os pedacinhos de perigo que recobriam o chão. Mais uma vez, o bichano afundou-se nos braços roliços de sua mamãe postiça e recebeu todo o carinho e atenção que a vida lhe reservara.
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Era uma manhã de sábado. A luz invadira seu último sonho. Ele se levantou enjoado de dormir e como de costume, foi serelepe até a sala de estar. Oba, já é dia! O cabelo espetado alegrava o rosto marcado de cama, conferindo-lhe um ar engraçado. Ainda se aconchegava no sofá de veludo enquanto os dedinhos ariscos procuravam o controle remoto da televisão. Naquele momento foi que percebeu um ruído no fundo do estômago. Estava faminto. Dirigiu-se até a cozinha a passos curtos, tocando o chão gelado de porcelana branca. Cantarolava alguma música.
Lembrou-se de que da noite anterior sobrara um pedaço de bolo gostoso. Era de milho ou de fubá? Sei não, concluiu sozinho. Mas sabia que estava bom toda a vida, e nada mais lhe interessava no mundo, além daquela porção de delícia. Acho que consigo pegar sozinho! Concluiu com total confiança. Espichou o corpo curtinho o máximo que pôde até que seus pés quase nem mais tocassem o chão. Que grande aventura, pensava consigo fazendo ares de importante. Foi quando, fugindo ao controle, o prato pintado à mão mais o bolo amarelo voaram bancada abaixo. O prato estatelou-se em mil pedacinhos. Essa não! O bolo virou farofa doce misturada aos cacos de vários tamanhos espalhados pelo chão. Ai, e agora? Repetia inconsolável. E ainda estava descalço. Os olhos ameaçavam romper em pequenas lágrimas.
O estrondo repentino surtiu efeito no quarto vizinho. De lá partiram vozes abafadas. A mulher balbuciava palavras com pouco sentido, em tom azedo. Puseram-se em pé, homem e mulher, ainda sem vontade de abrir os olhos. Arrastaram-se até a cozinha e vislumbraram o ocorrido. Era o filho desajeitado. Mas que menino, nunca aprende! Não sabe que é perigoso entrar na cozinha, sozinho? E ainda descalço! Esbravejaram formando rugas na testa. O garoto se encolheu, ficando até menor do que seu tamanho real. Desculpa! Olhou tímido para os dois à porta da cozinha. Chegou mais perto, esquivando-se do medo. Enlaçou seus heróis pelas pernas, complementando o pedido anterior . Desconcertado, o casal retribuiu o carinho do garoto com um abraço demorado.
O gato parecia alheio ao episódio contracenado pela família Souza. Aquecido pela manta de patchwork, miou desafinado porque estava com fome.

(Priscila P. Mendes)

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